21 de mar. de 2011

NEM PRECISA SABER DIRIGIR PARA CONSEGUIR UMA CNH NO ESTADO DO RN


Com R$ 486,00, sem nenhuma aula de direção e com disposição de infringir a lei, você pode conseguir uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH) no Rio Grande do Norte.

O valor que tem sido pago por alguns potiguares para adquirirem o documento é dividido em R$ 186,00 referentes aos exames clínicos e psicológicos obrigatórios que são pagos ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RN); mais R$ 200,00 que é o preço médio que as autoescolas de Natal estão cobrando por 45 horas de aulas teóricas e 20 horas de aulas práticas. E os cerca de R$ 80,00 restantes são referentes ao valor cobrado por alguns instrutores de trânsito para negociar com os peritos do órgão a aprovação na hora do teste de volante.

O esquema de corrupção que envolve a aquisição das carteiras de habilitação é simples de entender e fácil de constatar. Após fazer os exames clínicos do Detran, o aluno matricula-se em uma autoescola, que por sua vez exige apenas que ele certifique sua presença na aula através da colocação da digital no sistema eletrônico previsto em lei, sem que de fato precise participar de nenhuma aula. Após o término do período das aulas, ele vai fazer a prova escrita do Detran e em seguida passa para o teste de volante. Antes mesmo de fazer essa última prova, o aluno tem a opção de negociar com o instrutor da autoescola quanto será pago ao perito. Em alguns casos não é preciso nem entrar no carro e sua carteira já está aprovada. São cerca de duas mil novas habilitações por mês no estado, sem que haja ideia de quantas delas foram adquiridas pelas vias normais. Enquanto isso, o número de acidentes de trânsito cresce ano após ano.

"Você valida a metade (das aulas) e faz outras dez. Só para pegar o percurso", Funcionária de auto escola cuja identidade foi preservada, em conversa por telefone.

O primeiro passo para ter uma CNH é fazer os exames clínicos e psicológicos. Conforme os dados do Detran, no mês de fevereiro, 3.866 pessoas em Natal foram consideradas aptas no exame clínico, 1.763 estavam aptas com restrições e não existia nenhum inapto. A avaliação clínica é um teste oftalmológico que dura poucos minutos e como foi mostrado pelos números, o índice de aprovação é de 100%. Depois do teste clínico vem o psicológico. Na capital, somente uma pessoa foi reprovada no mês passado, enquanto que 2.251 foram aprovadas e 978 estão inaptos temporariamente. Somente durante fevereiro 16.184 exames clínicos e psicológicos foram pagos ao Detran.

Passada a fase dos exames médicos é a vez de procurar uma autoescola. O Código Nacional de Trânsito determina que sejam 45 horas de aula teórica e 20 horas de aula prática. Mas quem desejar não fazer nenhuma aula e mesmo assim concluir o curso de formação de condutores poderá constatar que é possível.

A reportagem de O Poti/Diário de Natal comprovou que a prática de corrupção no setor é aberta e de fácil acesso. De quatro autoescolas procuradas pela reportagem, que falou por telefone com os estabelecimentos sem se identificar como órgão de imprensa, três aceitaram - chegando até a sugerir - apenas a colocação da digital para participar das aulas teóricas e práticas.

O Diálogo
Poti/DN - Alô, quem fala?
Atendente - Karla*
Poti/DN - É da auto escola * ...?
Atendente - É da auto escola ...
Poti/DN - Qual o valor para tirar a carteira de habilitação de carro e moto?
Atendente - R$ 700,00à vista e R$ 750,00 no cartão em até 10x.
Poti/DN - No caso, só carro?
Atendente - Tá R$ 500,00.
Poti/DN - Quantas horas/aulas?
Atendente - São 20 aulas.
Poti/DN - Quem tem prática de dirigir, precisa da aula prática?
Atendente - É a sua primeira habilitação?
Poti/DN - É, mas eu já dirijo há algum tempo. Eu ia fazer só para poder tirar a carteira.
Atendente - Você valida a metade e faz as outras dez. Só para pegar o percurso.
Poti/DN - A parte de carro não precisa fazer, faz só a de moto?
Atendente - É. Pode ser.
Poti/DN - Mas tem que ir colocar a digital?
Atendente - Isso. É o que vale na aula, a digital.
* O nome da funcionária e da autoescola foram preservados e são fictícios.

O sistema das autoescolas

O sistema biométrico, onde a presença do aluno é marcada pela digital, surgiu como um inibidor da "compra" de carteiras de habilitação. Porém, para o sistema funcionar é preciso o comprometimento da autoescola e do aluno, o que muitas vezes não acontece. A reportagem entrou em contato por telefone com uma autoescola na Zona Norte de Natal. No meio da conversa, após pegar informações iniciais, a reportagem se disse interessada na aquisição de uma carteira. A repórter disse que já dirigia há algum tempo e necessitava das aulas formalmente, para ter acesso à habilitação. "Você valida a metade e faz as outras dez (horas). Só para pegar o percurso", disse a atendente. "Mas tem que ir colocar a digital?", questionou a repórter. "Isso. É o que vale na aula, a digital", respondeu.

Basta a pessoa lançar a proposta de não fazer a aula que a autoescola aceita e mostra sempre um jeito para satisfazer o cliente. Uma outra ligação foi feita para uma autoescola que fica próxima ao Detran. A pessoa que falou ao telefone se mostrou inicialmente contra a ideia de não exigir a presença nas aulas. "Eu já dirijo há uns três anos? Precisa mesmo da aula?", insinuou a reportagem. "As aulas são importantes. Conhecimento nunca é demais", respondeu o atendente. E depois complementou: "O ideal seria você vir aqui. Para saber como é seu tempo", disse. A honestidade durou poucas horas. Ao chegar na auto escola diante do argumento da falta de tempo, a funcionária informou que a maioria dos alunos trabalha e passa lá apenas para colocar a digital.

Na aula teórica, os alunos passam às 7h35 (a aula pode ser até 15 minutos antes das 8h) e voltam para concluir a aula às 11h30 (tolerância de 30 minutos após o horário). A ação é repetida no período da tarde para que o aluno possa fazer o curso de maneira mais rápida. No caso das aulas práticas, que têm duração de 50 minutos, "o esquema" é feito no horário de almoço dos alunos. A fraude na hora de adquirir uma carteira de habilitação no estado é de conhecimento comum da população, ao ponto da reportagem de O Poti/Diário de Natal ter feito todo levantamento de informações* sem que os entrevistados, pelo menos, questionassem com quem estavam falando.
* Todas as ligações e conversas foram gravadas

Facilidade para "comprar" a aprovação do exame prático

Feitas ou não feitas as aulas teóricas, o procedimento seguinte é passar pela prova escrita do Detran. Segundo o subcoordenador do setor de Habilitação do Detran, Willame Lopes de Araújo, são 30 questões feitas em ordens variadas dependendo da prova, o que garantiria a segurança do exame. A aprovação no teste teórico autoriza o aluno a iniciar as aulas práticas e em seguida fazer o exame prático, mais conhecido como "teste de volante". São nos dias que antecedem essa avaliação que muitos alunos negociam a segunda parte da "compra" de sua carteira. Em poucos minutos de conversa no pátio do Detran, onde são realizadas as provas com carros e motos, é possível escolher como se comprar uma carteira.

A reportagem de O Poti/Diário de Natal conversou com um aluno que aguardava um amigo sair do teste, no pátio. Ele confessou que estava renovando a carteira, mas que no dia do seu teste sequer entrou no carro. O instrutor da autoescola que ele pagou, na Zona Sul de Natal, negociou com os alunos um pagamento que ele daria ao perito. "Ela já tem seu nome e CPF. Você vai só lá dentro assinar e pronto", explicou, acreditando que passava informações a alguém também interessado em adquirir uma carteira.

A conversa foi interrompida pelo instrutor, identificado como filho de um ex-funcionário do Detran, que chamou o jovem e seu amigo até um carro. Ao sair do carro, o rapaz aproximou-se com o amigo e relatou que o instrutor faria o serviço por R$ 80,00. O bate papo no carro também serviu para ele pagar a renovação da habilitação e para seu amigo acertar o valor cobrado para não fazer o teste prático.

Convencido de que a "compra" era o melhor meio para conseguir a CNH de forma mais tranquila, o rapaz contou a história do dia do seu teste mais uma vez. Ele disse que apenas uma pessoa do grupo não pagou e foi reprovada porque os peritos a conduziram ao erro. A conversa foi encerrada com ele dando o número do telefone do instrutor para uma possível posterior negociação e as inúmeras vantagens que o seu "professor" da autoescola tinha por ter um pai ex-funcionário do Detran.

Entre elas, mais uma forma de burla ao sistema, dessa vez na hora de pegar a carteira de habilitação. O instrutor cobrava R$ 10 de cada aluno e ele mesmo ia pegar o documento, situação não permitida pelo Detran. Apenas o dono da CNH pode recebê-la no órgão. Provavelmente por precaução, o instrutor em nenhum momento aproximou-se da conversa, observava toda negociação de longe.

Quem quiser saber como é fácil negociar uma fraude no teste prático para habilitação basta ir até o pátio das provas e citar o nome de alguns peritos que já são famosos pela aceitação de propina. A pressão para "pagar" pela carteira é tão grande, que muitos alunos ficam com medo de serem reprovados por não terem "ajudado" ao perito. De acordo com o subcoordenador de Habilitação do Detran, Willame Lopes de Araújo, uma das estratégias para evitar a corrupção junto aos peritos é não deixá-los na função por muito tempo. Por algum motivo o plano do Detran não está dando certo,já que há alguns avaliadores de provas práticas que estão no pátio há muitos anos.

Número de fiscais para coibir fraudes é insuficiente

A responsabilidade de fiscalizar o trabalho das autoescolas é do Detran, mais precisamente da Controladoria, subcoordenada por Antônio Patriota. Ele afirma que são realizadas fiscalizações "surpresa" três vezes por semana nos centros de formação de condutores. Porém, o subcoordenador não conseguiu explicar como isso é feito com apenas cinco fiscais para 105 escolas em todo estado. Patriota admite que seriam necessários no mínimo mais cinco pessoas para atuar nessa área. "Quando comprovada a fraude é dada uma punição", apontou. A punição pode variar do fechamento por 30 dias até a cassação da licença de funcionamento. Conforme Patriota, não expor os preços cobrados é uma infração considerada leve. Já o fato de colocar a digital e não participar das aulas é passível da cassação da licença. "Isso é considerado gravíssimo", declarou.

Um dos fiscais, que participava da entrevista com Patriota, alertou para uma nova fraude. A da foto. O sistema biométrico permite que após várias tentativas de colocar a digital sem o reconhecimento do aparelho, a presença na aula possa ser validada por uma fotografia feita pela câmera do computador na hora. Uma autoescola estava fotografando as fotos dos alunos. A descoberta não foi feita pelo Detran. De acordo com o próprio fiscal, foi a empresa responsável pelo sistema da biometria que denunciou o fato ao órgão. Patriota afirma que quase não há denúncias contra peritos, até porque, seria necessário o denunciante identificar-se, o que desencoraja quem pretenda formalizar denúncia. "Ela pode pedir sigilo", alega.

Como denunciar

No panfleto distribuído pela Ouvidoria do Detran tem a seguinte frase: "A Ouvidoria tem como atribuições: ouvir, encaminhar e acompanhar as denúncias, reclamações e sugestões de quem utiliza os serviços oferecidos pelo Detran-RN". De fato é possível denunciar, desde que o denunciante apresente seu nome, contato e comprove o que está dizendo. O recém chegado ouvidor, Jefthe de Araújo, lembrou que foram feitas apenas três denúncias referentes a autoescola, em sua maioria, reclamando apenas da prestação de serviço. O mesmo número de denúncias foi feito em 2010 contra os peritos. "Quem quer fazer denúncia de corrupção tem medo porque precisa dizer o nome", confirma. A sugestão do Ouvidor é que o denunciante forneça um nome fictício e informe seus dados reais. Muito embora, dependendo da gravidade da situação, o nome do denunciante pode ser solicitado pela diretoria do órgão e a Ouvidoria deve fornecê-lo.

Fonte: O Poti/Diário de Natal
Via: GTC Mossoró

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